O mês era setembro. O ano, 2014. Minha BMW K1600GTL precisava, com urgência, de pneus novos. Animado com comentários que havia lido sobre uma revenda BMW com serviços de alta qualidade, na cidade de Asheville, Carolina do Norte, rumei para a Eurosport, apesar das quase duas horas que a separam de minha casa. Digamos que ir até lá serve como desculpa para subir estas extraordinárias montanhas que, segundo muitos, reunem os melhores “rolés” de moto dos Estados Unidos.
A turma da Eurosport confirmou, na prática, a fama que carrega. Simpática e competente, a equipe me surpreendeu assim que a GTL entrou na oficina. “Nelson, não gostamos que os clientes fiquem na loja esperando os serviço serem executados. Por que você não pega uma de nossas motos de demonstração e vai dar um rolé? Volte em umas 3 horas e sua moto estará pronta. Você não quer testar a nova GS? Não saia antes de tomar um cafezinho. Fique à vontade, ok?”
Ato contínuo, colocaram na minha mão a chave de uma reluzente BMW R1200GS 2014. Eu não tinha outra opção a não ser sair pelas montanhas testando o brinquedo.
E assim se deu a minha introdução ao mundo GS. Duas horas de testes depois, eu estava convencido de que aquela seria minha próxima moto. Os detalhes que fazem a GS a moto mais vendida da BMW – e uma das referências da indústria no mundo – estão fartamente documentados na internet. Não precisamos repeti-los. Mas foi preciso esta obra do acaso para que eu exclamasse, de dentro do capacete, naquela tarde de 2014: “Ah, agora entendi!”
Desde então a GS – a Brigitte, com eu carinhosamente batizei a minha – é a moto que habita minha garagem. Já visitamos inúmeros parques nacionais, diversos estados americanos e até mesmo o Canadá. Posso dizer que depois de 4 anos conheço bem as artimanhas e os maneirismos desta moto.
Pois hoje eu e Brigitte nos vimos em situação semelhante àquele 2014, porém com papéis invertidos. Enquanto ela recebia filtros e óleo novos, eu sai por Asheville pilotando uma reluzente BMW R1200RT vermelha, me perguntando: será que esta RT é melhor que a minha GS?
A dúvida é pertinente. As motos possuem muitos elementos em comum, a começar pelo motor, câmbio, eletrônica, comandos e freio. As duas usam o boxer de 1170cc, 8 válvulas e 125cv. As duas possuem suspensão dianteira Telelever, da qual falaremos um pouco mais adiante. As duas possuem ABS, controle de tração, suspensões eletrônicas, cruise control, tração por cardã, acabamento primoroso e preparação para GPS. A despeito de tantos traços comuns, a RT é vestida para uso urbano, com roda dianteira de 17” e carenagem, enquanto a GS se destina a uso misto, com sua roda dianteira de 19” e suspensões mais altas.
Anos de GS – uma moto alta – acabaram afetando meu julgamento com relação a outras motos. Ao sentar na RT o primeiro pensamento que me veio à mente foi “nossa, como essa moto é pequena e baixa”. Mas basta analisar com calma para se perceber que esta afirmação não faz sentido algum. A RT é uma “sport tourer” de amplas proporções e muito confortável. Não há nada de “pequeno” nela. O problema era minha “memória postural” que esperava algo diferente.
Uma leve pressão no botão de power, outra no start e pronto. O som conhecido do boxer 1200 enche o estacionamento. Durante muito anos nutri uma inexplicável implicância com os boxers da BMW. Achava-os “esquisitos”, ou qualquer outro adjetivo negativo que estivesse à mão. Aqueles cabeçotes pra fora, coisa mais estranha. Ainda bem que consertei esta tolice. Hoje sou um fã ardoroso destes motores e não me vejo usando outra coisa.
Ao engatar a primeira marcha, notei que o câmbio dos modelos 2018 é mais sofisticado, mais macio. Os câmbios BMW sempre foram criticados por serem “de trator”, pesados e fazerem muito barulho quando se engata a primeira marcha, por exemplo. Minha GS é assim. Mas esta RT é suave e silenciosa. As modificações feitas em 2017 de fato deram certo. Este câmbio novo é muito mais gostoso de usar.
Os primeiros quilômetros comprovam então o que eu suspeitava. A roda de 17” na frente confere à RT uma agilidade que a GS não consegue exibir. O “turn in”, a velocidade com que ela muda de trajetória e deita nas curvas é muito maior do que na GS. Nenhuma surpresa, na medida em que sabemos que quanto maior a roda dianteira, mais lentas são as transições. Mas, ainda assim, o resultado é muito aparente e, francamente, espantoso. Esta moto faz curvas com muita competência e é divertidíssima de deitar. O chassis se mantem rígido o tempo todo, não oscila, não assusta e não interfere em nada. Testei frenagens mais fortes no meio das curvas e a moto se manteve neutra como poucas vi.
Outra diferença fácil de perceber é o espaço para as pernas. A distância entre o banco e as pedaleiras é significativamente maior na GS, o que acaba conferindo maior conforto em viagens de longa distância. O triângulo banco-pedaleiras-guidon da RT é menor, e eu me senti meio apertado ali. Apenas para referência, tenho 1.86m de altura. Acho que, de novo, fui vitima de minha memória postural. Tenho forte impressão de que depois de 2 ou 3 meses usando apenas a RT eu me acostumaria e poderia perfeitamente atravessar o país com esta moto, em pleno conforto.
Os freios merecem um capítulo à parte. São espetaculares. Discos flutuantes de 320mm na dianteira e pinças monobloco da Brembo, de 4 pistões. Eu me arrisco a dizer que estes freios são mais potentes e mais fáceis de modular que os freios EBC que usei no campeonato brasileiro de motociclismo. ABS dinâmico, frenagem dianteira e traseira simultâneas e mangueiras de aço completam o quadro. É um setup primoroso.
Ao entrar na auto estrada e atingir velocidades de 130 Km/h, pude perceber que a fama da aerodinámica da RT se justifica. Bastou colocar a bolha na altura certa, usando o comando elétrico, e a turbulência no meu corpo sumiu. Nenhum vento nos braços, ombros e capacete. É como se você estivesse numa bolha de ar só sua, viajando com tremendo conforto. É bom deixar claro que aqui no Tio Sam não vale à pena bancar o engraçadinho e se aventurar a 170Km/h (ou mais) pelas estradas. A chance de você passar a noite na cadeia é grande. Então 130Km/h foi o máximo a que me atrevi.
Para um país como o Brasil, onde as temperaturas são altas durante boa parte do ano, talvez o melhor seja andar com a bolha na altura mínima. Nesta configuração você recebe bastante vento no capacete e ombros, o suficiente, talvez, para espantar o calor. Ou não, se você estiver no Rio de Janeiro no verão.
A fome apertava e decidi parar para um lanche. As bolsas laterais foram perfeitas para guardar capacete e jaqueta, e a tranca central é muito conveniente. Basta apertar o botão no painel e as malas se fecham, automaticamente. Já tinham me dito que chave é coisa do século passado. Perfeito.
Na volta para a Eurosport pude fazer outra constatação. A relação final na RT é mais longa que na GS. Na estrada, a 120 Km/h, a RT gira quase quase mil giros a menos, o que faz a viagem ser mais agradável. O motor não berra. Em contrapartida, justamente por ter uma relação mais curta, a GS arranca mais rápido: de 0 a 100 Km/h em 2.9 segundos contra 3 segundos da RT. Pois é. Um décimo de segundo apenas. Na prática, esta diferença não significa nada. Em tempo, apenas para referência, a Yamaha R1 2017 atinge 100Km/h nos mesmos 2.9 segundos.
E chegamos à suspensão Telelever, da qual sou fã, e que equipa tanto a GS quanto a RT. O grande benefício desta geometria dianteira é evitar os mergulhos excessivos, mesmo em frenagens de emergência. A motocicleta se comporta de forma mais estável e, no uso diário, é mais confortável do que uma motocicleta de garfos tradicionais. Quando pressionadas, as Telelever aumentam o ângulo de caster – enquanto as tradicionais diminuem – o que faz a frenagem muito mais segura. Quanto maior a emergência, mais estável é o chassis!
Muitos criticam a BMW dizendo que a Telelever não dá “feedback”, que não “fala” com o motociclista. Sejamos práticos. A rua não é lugar para se “falar” com a suspensão. Quem quer “conversar”com a suspensão deve procurar um autódromo, investir em Ohlins e aprender como regular suspensões. As Telelever não se propõem a isso.
Ao entregar as chaves o veredicto já era óbvio. A BMW R1200RT é com razão a melhor sport tourer do mercado. Só não faz o seu café da manhã. O resto ela faz. E bem. É quase tão divertida em curvas quanto uma verdadeira moto racing. É tão confortável e estável numa estrada como uma Gold Wing. As malas são enormes, o conforto para o passageiro é ótimo, a moto é facílima de pilotar, o chassis é um primor e, com suspensão eletrônica, muito versátil. O motor tem o apetite certo, nem mais, nem menos – em tempo, eu realmente não sei para que servem 180 cavalos numa moto de rua, mas voltemos ao assunto que importa – e numa viagem ao Rio Grande do Sul, se o frio apertar, basta ligar o aquecimento de banco e punhos que tudo melhora.
Mas, afinal, ela é melhor que a GS? Não, ai já seria demais. A GS é um capítulo à parte. A Brigitte ainda é a rainha na minha garagem.
(Meus agradecimentos a Eurosport Asheville, a revenda mais bacana e competente que conheço.)
Até o último parágrafo eu tinha a certeza de que o divórcio entre Nelson e a Brigitte já estava com data marcada, mas para minha surpresa, mesmo diante de tantos adjetivos da nova moto o casamento se manteve.
Ainda bem, pelo menos assim permanece a possibilidade de um dia eu dar uma voltinha na Brigitte.
Parabéns pelo artigo, Nelson.