Motociclistas são uma audiência difícil! São pessoas que simplesmente pela própria escolha das duas rodas, se destacam por interpretarem riscos de uma forma muito particular. Muitos dos que estão lendo agora já tiveram suas cotas de histórias nada fáceis e por isso mesmo não se impressionam à toa. Contudo, todos tiveram um começo e outros leitores podem até mesmo estar começando agora. Em nome desse momento que atinge a todos nós, eu resolvi contar sobre essa viagem.
Sim viagens de moto podem parecer uma combinação entre aventureiras, interessantes e arriscadas. A graça está exatamente nessa mistura!! Eu já havia escutado histórias de motos 125cc percorrendo o Brasil de ponta a ponta. Lido uma matéria ou outra de motos com mais de 50 anos percorrendo grandes distâncias. Então, quando eu percebi que teria que fazer a viagem Cuiabá – Rio na minha Yamaha Fazer 250 (2008) eu sabia que era possível. Entretanto, alguns detalhes tornavam a história mais exigente um pouco.
Primeiramente a idade/quilometragem da Fazer. Comprada zero kms em 2009, essa moto estava com 9 anos de uso diário e 118 mil kms rodados. Não era uma moto velha e nem em mau estado, mas já tinha uma idade e um quilometragem respeitável e com isso vem aquela preocupação se algo vai quebrar no caminho. Não dava para fazer uma revisão minuciosa então me limitei ao mínimo, troca do pneu traseiro, manutenção de freio e óleo. O segundo aspecto e talvez o mais relevante é que eu faria a viagem inteira sozinho, sem nenhum tipo de apoio a não ser o eventual socorro na própria estrada. Considerando o estado das rodovias no interior do Brasil e o trânsito persistente de caminhões bi-trens dividindo as esburacadas vias de uma só pista, as chances de eu ter problemas não eram pequenas. O terceiro ponto que incomodava um pouco era o fato dessa ser a minha primeira viagem de moto. Apesar da longa parceria com a Fazer por quase 10 anos e do uso cotidiano pra trabalhar, o dia em que passei mais tempo no selim dessa moto foi acompanhando o test drive que o nosso amigo Mário Barreto fez com a Triumph Thruxton nas estradas do interior do Rio que deve ter dado cerca de 300 kms e umas seis horas de pista. Por fim mas não menos importante, confesso que não foi nada tranquilizador planejar a viagem sozinho sem ter com quem trocar uma ideia e estando numa família sem tradição motociclística, ninguém me apoiava quando que comentava da viagem muito pelo contrário achavam um risco absurdo.
A pergunta mais frequente que eu escutava dos leigos sobre a decisão por essa viagem era “porque não vender a moto em Cuiabá e comprar outra no Rio”. A resposta de praxe era uma resposta técnica, “porque eu sei que essa moto foi bem cuidada por mim desde nova, ninguém me garante o estado da moto que eu comprar no Rio, sem falar que sempre se perde dinheiro em vendas e a menos que eu colocasse mais dinheiro na compra da nova moto eu provavelmente sairia perdendo.” Mas apesar desse ser um motivo técnico bastante razoável, haviam mais dois motivos nada técnicos influenciando na minha decisão. O primeiro é que um cavaleiro não sacrifica um cavalo em perfeita saúde por comodismo, há um senso de camaradagem entre piloto e moto que sei que vocês entendem muito bem. O segundo motivo está na imensa dificuldade em se resistir a chance de fazer uma viagem longa de moto!
Isso posto, tenho que reconhecer que nada como um bom motivo para deixar tudo mais coeso. A minha transferência no trabalho já estava se dando de Cuiabá para o Rio para poder dar apoio a minha filha com uma saúde delicada e em tratamento no Rio. Essa moto facilitaria meu deslocamento no Rio e voltar sem ela seria um complicador. O momento da volta coincidia com o aniversário da minha filha e planejei minha saída de Cuiabá para chegar a tempo da comemoração com ela o que provavelmente faria os últimos quilômetros ainda mais dramáticos!
Armado de motivos e de um bom conselho do Mário, “pare a cada duas horas mesmo que não precise abastecer” eu comecei a planejar a viagem de retorno todos os dias no fim do expediente. Com o guia de estradas na mão, o notebook na outra e uma régua eu ia convertendo centímetros em kms no mapa e calculando a distância entre uma cidade e outra. Com a Internet eu checava a distância e o tempo de viagem, assim com eventuais avisos de obras ou desvios. Esse sistema de dupla checagem se mostrou muitas vezes útil, pois o conflito entre as fontes de informação era comum. Eu já estava habituado a viajar de carro no interior de Mato Grosso então sabia que muitas vezes as estradas não tem placas nem pontos de referência. Dessa maneira achei melhor acrescentar um terceiro sistema de checagem de direção na viagem. Eu levaria uma bússola presa no guidon que mostraria a direção em graus que eu estava viajando e que eu já havia previamente identificado durante o planejamento. Caso eu pegasse uma bifurcação que me levasse a outro rumo no circulo trigonométrico eu perceberia rapidamente durante a viagem e corrigiria a tempo. Aliás tempo era algo precioso nesse planejamento, pois eu não poderia viajar a noite. O facho de luz de Fazer é muito fraco e pilotar por uma rodovia desconhecida à noite é um convite para cair num buraco. Planejei a viagem para fazer aproximadamente 500 kms por dia, um total de quatro dias com três pernoites.
A rota escolhida foi um percurso direto entre Cuiabá e Rio numa diagonal que cortava Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo até chegar ao Rio. A primeira noite seria dormida já em Goiás na cidade de Mineiros, a segunda em Minas na cidade de Uberlândia, a terceira em São Paulo no município de Cordeirópolis. A cada duas horas uma parada obrigatória para esticar as pernas ou colocar um pouquinho de açúcar no sangue. Não havia espaço para parar para almoçar, não apenas pelo apertado da hora já que eu não viajaria a noite, como para não viajar com o estômago cheio. A cada 150 kms rodados uma parada para abastecer. A autonomia da Fazer é excelente, rodando 300 kms facilmente com mais uns 80 kms de reserva, porém eu preferia abastecer quando chegava em meio tanque.
Ao alcance do piloto no guidon estava uma câmera para filmar trechos da viagem, a bússola para checagem da direção e a antena corta-pipa muito necessário após entrar na região Sudeste. Sobre o tanque uma “aranha” segurava o mapa do trecho e o plano de viagem com a sequência dos municípios, distância entre eles e tempo de viagem. A bordo da moto a mochila com o meu notebook de trabalho e outra mochila com uma muda de roupa, um conjunto para chuva, uma barraca caso fosse preciso o pernoite na estrada, três garrafas de reparo de pneu, um pouco da água e comida; tudo preso amarrado sobre o banco na posição do garupa.
A saída de Cuiabá se deu antes das 8:00hs da manhã do dia 08 de junho de 2018. Logo após passar a serra do Aricá uma neblina muito incomum pra região, mas que estava de acordo com a chegada de uma frente fria já prevista quase me forçou a parar no acostamento. Reduzi o ritmo, mas mantive o curso, pois não me sentiria mais seguro no acostamento com aquele fluxo de caminhões intenso característico da região. As estradas em Mato Grosso são muito movimentadas em trânsito de caminhões escoando os grãos produzidos e recebendo os víveres para a cidade. Desde produtos industrializados até hortaliças e legumes, tudo vem de fora do Estado! Contudo a velocidade que pude desenvolver ora pelo trânsito ora pelos buracos me fez chegar com o Sol quase se pondo em Mineiros, cheguei a pensar que ficaria acampado na estrada logo no primeiro dia. Os últimos 100 quilômetros desse dia foram especialmente agoniantes, não apenas pelo Sol que ficava cada vez mais baixo no meu retrovisor, mas pela falta de placas anunciando Mineiros até praticamente a cidade se revelar no horizonte!
No dia seguinte, deixo o hotel e continuo por uma das paisagens mais bonitas de cerrado que o caminho reservava. Porém esse foi o trecho da estrada mais perigoso, ainda que o fluxo de veículos tenha reduzido drasticamente e muitas vezes me vi completamente sozinho na pista; essa era profundamente marcada por asfalto derretido formando valas e sulcos que jogavam a moto de um lado para o outro como um barquinho numa tempestade. Na véspera, antes de chegar a Mineiros a Fazer tinha rompido o retentor da bengala direita (bem o lado onde fica o disco de freio) e agora com tanta trepidação eu me perguntava se a moto ia conseguir vencer as estradas de Goiás. Como os sulcos no asfalto mimetizam o rastro das rodas dos caminhões, haviam duas trilhas para escolher onde transitar. Numa certa altura, tendo escolhido a trilha do lado esquerdo da pista a moto foi jogada para a pista do fluxo contrário bem na hora que passava um caminhão!! Por pouco consegui evitar invadir a faixa contrária e escapei de uma colisão frontal! Humildemente passei a trafegar na trilha de asfalto derretido da direita e numa certa altura ainda fui forçado a entrar num acostamento cheio de crateras para sair da frente de outro caminhão em ultrapassagem proibida que invadia minha pista. À tarde, esse dia se passou um pouco melhor com pista menos danificadas e belíssimas paisagens de cerrado. Uma pena no entanto o alto índice de atropelamentos da fauna silvestre que pude registrar, especialmente vítimas são os tamanduás.
Depois que entrei em Minas Gerais, passados talvez uns 100 kms a paisagem muda completamente, assim como a conservação das rodovias que passam a ser tapetes de asfalto! Agora são fazendas com cultivo de soja e outras safras, mas praticamente não se vê mais sinal do cerrado. Rodovias duplicadas também começam ali, uns 200 kms antes de Uberlândia e passam a ser a regra dali até o Rio de Janeiro. Dessa vez chego à parada do dia antes do Sol se por e com mais tranquilidade também. Como Uberlândia fica a exatamente 1000 kms de Cuiabá e 1000kms do Rio eu diria que essa viagem contou com quase metade do trajeto de asfalto muito ruim e perigoso.
Nessa altura da viagem meu irmão confirma que quer me acompanhar a partir de São Paulo e me sugere que eu pare em Cordeirópolis, pois a cidade de Americana que era o meu alvo pretendido para o terceiro dia tinha um evento acontecendo e deveria estar sem vagas nos hotéis. Ele saiu do Rio nesse mesmo dia (10 de junho) para me encontrar a tardinha em Cordeirópolis. Infelizmente a câmera parou de funcionar nesse dia e não pude registrar as paisagens, porém elas não mudaram quase nada. O muito bom estado de conservação das rodovias compensa a monotonia da paisagem agrária e permite uma viagem mais descontraída. A chegada em Cordeirópolis se dá sem dificuldades e logo depois meu irmão em seu querido Alfa Romeo 156 se junta para completar a ultima perna da viagem.
A saída no dia 11 de junho e último dia da viagem, se dá cedo e é marcada pelo trânsito pesado das estradas próximas a região metropolitana de São Paulo e depois da conurbação com o Rio. Esse trecho em minha opinião talvez tenha sido o que mais demandou da minha pilotagem, porque permitia e exigia uma pilotagem acima dos 80km/h em curvas de alta velocidade com fluxo intenso de carros e ônibus muitas vezes mais rápidos que eu. Realmente a cobertura do Alfa Romeo se mostrou providencial, pois de certa forma criava um obstáculo entre os veículos que vinham muito rápido e eu. Chego na linha vermelha perto das 18:00hs e me separo do Alfa Romeo que fica preso no engarrafamento e rumo para o Recreio para a festa de minha filha. Tudo valeu a pena quando vi aquele sorriso de quem tinha certeza que eu iria chegar a tempo. Bem, eu tinha certeza que a Fazer iria me trazer inteiro….resta saber no quê a Fazer tinha certeza…
Nota técnica:
Para aqueles que podem estar se perguntando como foi minha apreciação da Yamaha Fazer 250, aqui vai.
A moto teve um desempenho confortável e mais que satisfatório. A ergonomia é excelente e o piloto não cansa. O banco é largo e mesmo com mochilas presas ao banco do garupa, a moto se comporta praticamente como se estivesse sem carga. Como o peso da bagagem era baixo, apesar do volume ser considerável; o centro de gravidade permaneceu o mesmo dela “limpa”. Contudo essa é uma moto leve e numa estrada com asfalto ruim, vento e ultrapassando caminhões, você sente que uma moto mais pesada daria mais estabilidade e mais confiança, o que nos força a uma tocada mais moderada.
O consumo é excelente sendo capaz de uma relação de 25 km/l no Centro-Oeste em trânsito urbano, ela faz 33 km/l em trânsito urbano no Rio com a mesma marca de gasolina aditivada, não me perguntem porque… A vibração ao longo das 8 ou 9 horas de viagem não incomodou e nem o barulho do motor que é bem silencioso.
O motor sendo um monocilíndrico para uso urbano, fica no seu melhor por perto de 7000 RPM, entregando os 21 cavalinhos a 7500 rotações. Isso significa que ela viaja a 80 a 90 km/h com desenvoltura e ainda tem um pouquinho de fôlego para algo mais. Contudo, dadas as condições das estradas do interior do Brasil, a velocidade mais indicada fica perto dos 80 km/h, dessa forma a moto fica bem adequada, especialmente porque a suspensão macia poupa bastante o piloto dos inúmeros buracos. Reconheço que na via Dutra com carros muito rápidos pressionando para ultrapassar, você às vezes se sente como um peixinho em mar aberto.
Se eu viajaria novamente com ela? Certamente!!
Vejam mais fotos abaixo.
Beto.